‘Eu fui vítima, minha filha foi vítima’

Foto: Luciney Martins | Manifestação no centro de SP

Entre janeiro e abril, o Estado de SP registrou 4.644 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes

A pequena Maria (nome
fictício) foi explorada sexualmente por seu tio, aos 6 anos. Tudo aconteceu na casa da tia, irmã de sua mãe, onde ficava, enquanto seus pais trabalhavam.

Um dia, brincando de contar segredos com Joana, sua mãe (nome também fictício), revelou que o tio fazia coisas estranhas e que não estava gostando. Naquela noite, Joana não dormiu, perdeu o chão. Lembrou-se de uma história semelhante, reviveu a sua história, quando aos cinco anos, também sofreu exploração sexual. “Eu fui vítima, minha filha foi vítima e quando eu soube, pareceu ter acontecido comigo de novo”.

Joana decidiu não se calar, busca justiça por sua filha, por um passado não reparado, por um futuro sem vítimas. “Não me interessa o quanto ele pode pegar de cadeia, quero que ele seja condenado, que assuma o que fez perante a sociedade. A pior condenação é ser exposto”, desabafou a mãe.

O processo de Maria está na Vara da Violência Doméstica do Foro Regional de São Miguel Paulista, e aguarda denúncia do Ministério Público para que o  agressor seja indiciado e responda criminalmente pelo abuso.

Segundo o advogado que acompanha o caso, Fernando Rodrigues, a denúncia
depende do conjunto de indícios que já estão nos autos e das entrevistas que
estão sendo realizadas no setor psicossocial. “Na prática ainda não existe processo criminal contra o indiciado e estamos na expectativa que isso possa ocorrer o mais breve possível”, pondera o advogado, e enquanto isso, o “tio” está solto.

O agressor esta sendo investigado, com base no Estatuto da Criança e do  Adolescente (ECA), pelo crime de produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente, já que em seu celular e computador foram encontradas fotos da pequena Maria nua. A pena para esse crime varia de quatro a oito anos e multa.

Junto ao ECA, o agressor terá de responder também ao código penal que  aponta crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos, e para esse crime, a pena é de oito a 15 anos. Maria passou por perícias, contudo a demora em realizálas e a mudança do local onde estava tramitando o  processo, da Vara Comum da Barra Funda para o Foro Regional de São Miguel Paulista, atrasaram o andamento do processo.

Para Joana, a morosidade da Justiça e a “falta de vontade” de alguns órgãos públicos, desencoraja que outras mulheres  e famílias denunciem o abuso. “O escrivão disse que não adiantava eu processar, o conselho tutelar também.
Falavam-me ‘olha, a gentepega casos como esse direto e não dá em nada.”

A história de Maria e Joana se repete por todo o Brasil. Nos primeiros quatro meses de 2012, o módulo Criança e Adolescente do Disque 100 registrou um aumento de 71% das denúncias de violação de direitos humanos contra crianças e adolescentes em relação a 2011. Entre janeiro e abril deste ano,  foram 34.142 denúncias contra 19.946 em 2011.

A região Sudeste é a maior com número de relatos (36,2%), seguida do Nordeste (34,7%), Sul (11,3%), Centro-Oeste (9%) e, por fim, a Região Norte (8,8%). São Paulo é o estado com maior incidência de denúncias (4.644), seguido pelo Rio de Janeiro (4.521) e Bahia (3.634).

Dados do Disque 100 revelam que oito em cada dez vítimas são meninas, assim como Maria e Joana. “Demorei 30 anos para falar sobre isso, fui me reconstruindo sozinha, foi um processo doloroso. Hoje, ajudo minha filha a se recuperar”, disse Joana.

Já Maria, naquela tarde de entrevistas, carregava consigo uma trança e um  caderno. Perdida entre histórias, na livraria, carregava também a vontade de junto com a mãe escrever um livro, mas de estórias com sabor de infância e finais felizes.

Publicado no O SÃO PAULO, edição n° 2902.

Um comentário em “‘Eu fui vítima, minha filha foi vítima’

  1. Oi Karla,

    Parabéns pela matéria, muito bem elaborada, infelizmente sobre histórias tristes, felizmente existem pessoas, como você, que estão atentas e buscam uma sociedade melhor. Bjs

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