Dona Ida

Conheci dona Ida em Franca, no interior de SP,  ela tinha 101 anos e muitas histórias para contar…

Ida nasceu em Ribeirão Preto (SP) em novembro de 1914. Filha de italianos, era a única menina entre nove meninos, e lembra os traços de uma professora exigente, daquelas que acompanham as lições e anotações de seus alunos, sob o olhar amparado pelo fiel par de óculos.

Vive em uma casa antiga, sala com piso de madeira, herança da avó. “Não sei se vou me lembrar de muita coisa. São mais de cem anos, não é?”, pergunta, assim meio preocupada. Estava sentada em uma cadeira confortável, rodeada por porta-retratos que estampam fotos com os sorrisos da família: os dois filhos, Marco e Renan, os sete netos e sete bisnetos.

Ao falar de sua infância e juventude, relembra que, quando menina, brincava muito de casinha, na casa dos amiguinhos, mas que seu desejo maior era ser professora, e já treinava sendo boa aluna no Grupo Escolar Guimarães Júnior, localizado na região central de Ribeirão Preto. O pai não gostara muito da ideia de ver a filha escrevendo. “Ele achava que eu ia mandar cartas de namoro”, conta Ida, divertindo-se sobre o começo de seus tantos anos de vida.

Em 1936 se casou com Lafaiety Cordeiro, 22 anos, e aos 23, teve seu primeiro filho, Marco. Aos 24, o segundo: Renan. “Casei-me porque ele era bom, mas o que eu queria mesmo era estudar mais e ser professora.”
Antes, contudo, aos 18 anos, em 1932, passou a dar aula como professora normalista, realizando seu sonho de infância. “Eram bons alunos, bem comportados, muito obedientes. Tinham muito respeito”, revela, destacando que com a chegada dos filhos não abandonou a profissão, ao contrário. “Eu tinha sempre alunas que me ajudavam a cuidar das crianças, então não tinha problema.”

À frente de seu tempo – “Acredito que dona Ida era vanguarda em seu tempo. Imagine, naquela época as moças só pensavam em se casar e ter filhos, e ela não, queria lecionar. E mesmo depois de casada continuou dando aulas”, afirma uma de suas noras, a advogada Keila Pereira.

Ela se recorda do nome dos grupos escolares em que lecionou. É uma lista longa, mas o que guarda mesmo de experiência e faz questão de contar com detalhes é de suas aulas nas fazendas de café. Lá, crianças com idades entre 7 e 12 anos a aguardavam para serem alfabetizadas. Eram na sua maioria filhos de imigrantes que chegavam da Europa para refazerem suas vidas.

Para chegar até seus alunos nas fazendas da região, Ida fazia um percurso de seis horas por dia, de charrete. “Era muito longe, andávamos de charrete improvisada o dia todo, mas valia a pena, porque quando eu chegava lá estavam esperando a professora para aprender. “Meus alunos eram educados, me respeitavam. Hoje em dia, dizem que os alunos são desrespeitosos, mas isso aí tem que vir de casa, do berço”, conta a centenária.

Ida também falou da valorização da profissão, ou melhor, da falta disso: “A gente nunca teve um salário mínimo digno e acho que os professores precisavam ser mais considerados” É lamentável que a situação ainda hoje continue assim”. Ela exerceu a profissão por 34 anos ela ficou viúva em 1972. Nas últimas eleições, em 2014, votou amparada pelo seu filho e tornou-se notícia nos sites da região. “Achei que tinha o direito como brasileira de votar. Isso é exercer minha cidadania.” Votou, mas não revela em quem.

Velhice feliz – Atualmente, Ida vive naquela casa grande com jardim florido acompanhada de três cuidadoras: Dalira da Graça Lima, 66 anos, Maria Luiza de Lima, 75, e Mayra Maria Terra, 41. “Elas conversam comigo e, como saio pouco, me trazem as novidades da rua”, diz Ida. A sábia e ainda lúcida mestra faz, lentamente, sua caminhada diária na rua, contribui para sua qualidade de vida. Tem muleta, mas não a usa com frequência. Sua alimentação é normal e saudável e, como boa filha de italianos, aprecia uma macarronada, sempre acompanhada de um pouco de vinho.

Ela acorda cedo. “Eu até há pouco tempo estava com medo de morrer, mas pensei, já vivi tanto, Deus vai me ajudar nessa hora”, revela, com um sorriso de quem convive com esse receio. Sobre a profissão, revela ainda que sempre a exerceu com amor e dedicação. “Trabalhei muito, viajei muito de charrete. Toda a minha vida amei a minha profissão. Acho que os professores têm que amar ensinar”, conclui.

  • Recebi ontem à noite, a notícia de que dona Ida faleceu “sem dores, sem doença, apenas deixou o corpo serenamente” 😦

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