Irmã das crianças e dos mais pobres

Do sudoeste do Paraná à periferia de São Paulo, irmã Clara contou partes de sua missão em levar educação e cultura às crianças e aos mais pobres

Irmã Clara Amadio_foto de maio de 2017_Karla Maria3

A entrevista com a irmã Clara Amadio aconteceu em maio de 2017. Ela estava com 86 anos. Ontem, 25 de abril de 2018, soubemos de sua morte. Ela partiu, mas é certo que deixa em muitos de nós, inclusive em mim, sua energia, vitalidade e paixão em tudo amar e servir. Esteja em paz, irmã Clara. Seu sorriso e seu exemplo não serão esquecidos.

Segue a matéria que fiz sobre ela, nos morros da nossa Brasilândia… A entrevista aconteceu na primeira sala de catequese que sua congregação instalou no Elisa Maria, um bairro da periferia de São Paulo. Era 1993 e o bairro figurava entre as regiões mais violentas do estado de São Paulo quando as missionárias armaram sua “tenda” por lá.

Pequena, a sala tinha um sofá duro que apontava: ali não havia descanso. Para poder nos receber, a religiosa tinha acordado às 5h30. Já tinha atendido uma família, que segundo ela estava bem desestruturada, passou peças de roupa, secou o cabelo e deu um jeito nas unhas, embora tenha dito que não cultiva muita vaidade.

A conversa foi longa e nos levou ao começo de tudo: Capivari, cidade no interior de São Paulo onde a religiosa nasceu e foi batizada pelos pais Maria Luiza e Jiácomo como Etelvina Amadio, que em italiano significa Ama Deus. “Eu tive uma infância muito simples e muito bonita”, confessou a religiosa.

Caçula da família de sete irmãos, a menina tornou-se irmã Clara anos depois, quando completou 21 anos e entrou para a Congregação das Irmãs Escolares de Nossa Senhora. Em 1956, professou os votos religiosos. Ela conta que sua família não queria e que a impediu desde os 18 anos de idade de entrar para o convento.

Na ocasião, além da lista de enxoval, a jovem precisava apresentar um atestado de saúde à congregação para que iniciasse a vida religiosa, mas em consulta médica descobriu que ao longo de três meses seus irmãos estavam intervindo com o médico. “Era o médico da família, mas o meu irmão Fausto tinha passado antes de mim lá e ajeitado tudo com ele”, contou lembrando-se das artimanhas do irmão.

Irmã Clara Amadio_foto de maio de 2017_Karla Maria_2

Pressionou o médico e enfim conseguiu o atestado. No dia em que saí de casa para Jaú, local do convento, a família entrou em choque. “Naquele dia ninguém foi trabalhar. Parecia que alguém tinha morrido de tanto choro. A minha mãe levantou às 4 horas da manhã pra chorar mais e já fazia três dias que ela chorava. Meus irmãos homens, barbados, todos chorando”, contou a irmã com sorriso sincero, achando graça de seu passado.

Não foi só a partida que fora difícil. Quando chegou ao convento, achou o hábito, a roupa de freira, um tanto estranha, mas pensou: “não vou deixar de ser freira por causa disso”. Às vésperas do Concílio Vaticano II (1962-1965), irmã Clara liderava uma certa rebeldia junto às demais jovens e viveu os novos ares deste novo tempo na Igreja. “Ele (o Concílio) abriu o caminho. O que era essência e o que não era essência. Ele mostrou o que era principal, importante tanto para as freiras quanto para a Igreja toda. Ela queria era ajudar os mais pobres, servi-los, mas não entendia determinadas regras.

“Eu não aceitava tudo. Eu tinha dificuldade para ser obediente. Eu era liberta e briguenta, porque eu dialogava demais e isso lá (no convento) era meio raro. Eu batia na porta da superiora e falava irmã, eu não gostei da sua atitude naquele momento, a senhora errou. Ela via que eu uma menina boa e que tinha dom, por isso perdoava”, desabafou a irmã.

O caminho – Com suas sandálias andou pelo País levando a presença e o carinho de Deus, a Palavra transformadora. Destaca, contudo, uma experiência em especial, a que viveu no Paraná com famílias de agricultores analfabetos em Jaracatiá, hoje conhecida por Enéias Marques, no sudoeste do estado.

Era 1965 e lembra-se da simplicidade do povo, do frio que era grande e desafiava ainda mais a vida naquele cotidiano. Sem luz, a religiosa conta que as aulas duravam o tempo que as velas levavam pra queimar. “Quando acabava a vela, acabava a aula. Mas as velas daquele tempo eram melhores que as de hoje. Duravam mais tempo”, disse a irmã, divertindo-se.

Lembra-se que muitos adultos e crianças atravessavam quilômetros a pé e descalços a roça queimada pela geada para estudar com irmã Clara. Chegavam com os pés congelados, e lá a irmã os acolhia com duas bacias e uma toalha. Lavava os pés de cada um que chegava. Primeiro na água fria, para tirar o gelo, e depois na quentinha, a fim de aquecê-los e prepará-los para a aula.

Secava os pés de cada um e deixava-os prontos para o chão de madeira da escola improvisada, que tão bem os acolhia. Ali, o ensino ia além de qualquer conteúdo programático, e a ceia do lava-pés acontecia todo dia. “Ali, éramos três professoras e eu era a diretora também. Tínhamos uma relação de muito carinho com todos os alunos”, confidenciou a religiosa.

Anos mais tarde, em 2013, irmã Clara voltou à escola para matar a saudade daquele povo e para sua surpresa e lágrimas reviveu os gestos que praticara décadas antes. Seus olhos, socorridos por um par de óculos, acompanharam dois homens adultos se aproximarem com bacias e toalhas. Lavaram e secaram-lhe os pés.

“E eles lavaram meus pés lembrando quantas vezes eu lavei os pés deles. Carregaram-me no colo, você acredita? Há muitas marcas, muitas”, diz a irmã, emocionada. “Foi um gesto muito bonito”, conta a irmã com os olhos fechados bem apertados, sorriso de gratidão e mãos juntas postas sobre o peito, como se revivesse aquela cena.

São Paulo – Há 21 anos irmã Clara vive no Jardim Elisa Maria e faz desse espaço sua casa, onde doa e recebe atenção. Caminha pela periferia de muito buraco, lixo e esperança, sendo chamada pelo nome carinhosamente. “A presença das irmãs aqui no bairro foi muito importante e decisiva na vida de muito jovens, como eu. Elas nos deram educação e possibilidades de crescer e fazer o bem longe do mundo do crime”, disse Kelly Suzana de Araújo Silva, 37 anos, o braço-direito de irmã Clara.

Irmã Clara Amadio co Kelly_foto de maio de 2017_Karla Maria
Irmã Clara Amadio e Kelly Suzana de Araújo

Kelly é graduada em administração e teologia. Caminha agora para sua segunda pós-graduação na área de pedagogia. É testemunha viva do bem que irmã Clara e sua congregação fizeram para o bairro. Hoje, ela é diretora da Associação Sociocultural Madre Teresa de Jesus, iniciada na comunidade quando irmã Clara era provincial de sua congregação. E o capítulo para a conquista do terreno de ampliação para a associação conta com boas doses daquela “santa” rebeldia de sua juventude.

Na ocasião, por volta de 1995, irmã Clara escreveu cartas e mais cartas ao então arcebispo de São Paulo, cardeal dom Claudio Hummes, apresentando a realidade do bairro e pedindo dinheiro para a compra de um terreno no Jardim Elisa Maria que ampliasse a oferta de projetos para a comunidade. Contou com a ajuda do então bispo auxiliar da Região Episcopal Brasilândia, o falecido dom José Benedito Simão, para ganhar o coração do cardeal.

Com o dinheiro compraram o terreno e, de lá para cá, a associação oferece diariamente educação e atividades de cultura e lazer. Com 12 funcionários, recebem diariamente 220 crianças e adolescentes, divididos em duas salas com idades de seis e sete anos, duas de nove e dez anos, uma sala de oito e nove e duas de 11 a 15 anos.

“Sempre o Senhor me inspirou a amar muito as crianças e aos pobres. Não vale a pena viver e só rezar. A oração e a ação têm que estar perfeitamente unidas e desde criança sempre fui muito levada a querer o bem dos outros e sempre lutei por isso”, conta a irmã, que tem diabetes e três pontes de safena no coração.

Segundo os médicos precisa aprender a pisar no freio nas atividades pelos morros do Jardim Elisa Maria, o que parece ser a tarefa mais difícil de ser cumprida, já que aos 86 anos a irmã continua não medindo esforços para chegar às crianças e aos mais pobres, levando educação e plenitude na vida.

________________

(in memoriam)

Um comentário em “Irmã das crianças e dos mais pobres

  1. Ah, chorei o tempo todo lendo esta história tão linda. Ela me fez pensar o quanto Deus ama seu povo, mandando santos aqui na terra para cuidar dele. Claro, que Irmã Clara ocupou seu lugar junto aos santos e santas de Deus lá no céu, e se hoje, ela não pode mais subir e descer os morros, ela continua a interceder pelos seus aqui. Tudo isso me faz pensar que tudo tem jeito, que ainda há esperança, e que por mais que os jornais nos informem tanta desgraça, corrupção e tristeza, lá, no escondido, tem muita gente fazendo o bem, e Deus está vendo tudo isso. E você, Karla, é instrumento nas mãos de Deus para nos contar que o bem está acontecendo aqui, ali, no coração e na ação de tanta gente. Obrigada. Meu dia vai ser diferente porque conheci esta história.

    Curtir

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s