Pai é pai, na liberdade ou no cárcere

Paulo Henrique ao sair do presídio, acompanhado por Nice, agente da Pastoral Carcerária

Texto publicado em
O SÃO PAULO

Era sexta-feira, dia 12, 12h40, quando o portão da Penitenciária “Mário Moura e Albuquerque” se abriu pela última vez para Paulo Henrique Nascimento da Silva, 28 anos. Era a liberdade para o pai de Ana Alice e Vinícius, depois de sete anos e 11 meses de cumprimento de pena por tráfico de drogas. Era o Dia dos Pais mais esperado.

No portão do presídio, debaixo de um sol forte, Paulo abriu um sorriso, respirou fundo e falou a O SÃO PAULO. “A sensação é boa demais. A liberdade é o melhor presente que eu poderia ter ganhado, esse é o melhor Dia dos Pais que eu já tive. Vou cuidar dos meus filhos, da minha esposa e reconstituir minha família cada vez mais”.

Nas mãos, o jovem pai, carregava uma pequena bíblia, fotos da família e seu alvará de soltura. O corpo magro trazia um velho agasalho, bermuda e chinelas havaianas, que sustentaram seu ansioso caminhar, até sua casa no Jardim Ângela, zona sul da capital.

Pai de Ana Alice, 10, e Vinícius, 11, Paulo Henrique passou seu Dia dos Pais com toda a família. “Meus filhos ficaram bem com a presença do pai. Eu, que por muito tempo fui pai e mãe, fico muito feliz que ele, agora, assuma seu papel”, disse Elisângela Nascimento, esposa do jovem pai. A história de Paulo Henrique não é única. A reportagem esteve nos presídios de Franco da Rocha, nos dias 11 e 12, para acompanhar a “saidinha” dos pais que visitaram pela primeira vez seus filhos e falar com aqueles que não desfrutaram do benefício. “Aqui há um vazio. Há a saudade da família, dos irmãos e amigos. Eu peço perdão aos meus filhos e a vocês também pelo o erro que eu cometi. Espero não errar mais. Vou levar minha vida adiante, trabalhar e criar minhas filhas”, disse Pinto Lúcio Figueiredo, 55 anos. Pai de três filhos e cumprindo pena há cinco anos, de um total de 13 por homicídio. Depois de cinco anos, o mineiro Pinto Lúcio passou novamente o Dia dos Pais com seus filhos.

Calado, à frente do portão, estava Francimar Coelho Viana, 49 anos, pai de Denílson, preso há um ano e condenado há cinco anos e três meses por tráfico de drogas.  Essa é a primeira vez que nossa família passa por isso. Espero que meu filho não faça mais nada de errado. Todos temos direito de errar, não é? Mas não pode ficar errando. É ruim demais deixar ele aqui”, disse o pai que viaja da zona leste de  São Paulo, até Franco da Rocha, todo domingo para visitar o filho.“Enquanto ele  estiver preso, eu venho aqui, é meu filho, não vou abandoná-lo”.

Também no dia 12,O SÃO PAULO visitou o Raio 2, onde 446 homens cumprem pena. Lá histórias de arrependimento e saudade, se misturam às queixas quanto à morosidade da Justiça e falta de benefícios “na cadeia”. “Se nós tivéssemos escola e emprego bom, a senhora acha que ia “tá” cheio de gente aqui?”, dizia um jovem universitário preso, em meio aos demais no raio. Muitos se aproximavam da reportagem para deixar uma mensagem para seus pais e filhos, até que Laudinice Pedreira Rocha (Nice), agente da Pastoral Carcerária, pediu um momento para a oração.

Uma roda se abriu no meio do raio. Em seu entorno, as celas, antenas de TV com os seus “gatos” e roupas secando no varal, compuseram o cenário dos pedidos de oração, pelos pais falecidos, pelos filhos, pelas famílias e pela presença da pastoral no presídio. As orações se seguiram, até que um homem se dirigiu ao meio do grande círculo, abriu a bíblia, leu uma passagem do livro do Êxodo e pediu:  “Pai não nos deixeis cair de novo, dá-nos a esperança, a cada dia”, era Anderson Lima de Souza, 27 anos. De mãos dadas, trancados no Raio 2 e cobertos pelo céu azul, o “Pai Nosso” foi rezado com intensidade, seguido de uma Ave Maria, como poucas vezes visto por essa reportagem.

Pra que serve este blog?

Desde o início do Ká entre nós, em maio de 2008, observo que as matérias mais acessadas e lidas, estão ligadas aos movimentos sociais, às questões indígenas e especialmente à questões do cárcere privado. Para minha surpresa e alegria, os leitores deste blog, variam entre lideranças sociais e pastorais, professores, colegas jornalistas, políticos e seus assessores, bem como reeducandos (ex-presidiários) e seus familiares.

Neste link observa-se o número de mensagens trocadas entre esposas, namorados e amigos de reeducandos que enfrentam as dificuldades da visita, da saudade e claro, do preconceito.

Ontem (15/09), junto à Pastoral Carcerária, fui à Francisco Morato – uma microregião do município de Franco da Rocha, com cerca de 160 mil habitantes. Naquele local conheci duas famílias, a de Everaldo e Nenê. Ambos cumpriram pena em presídios de Franco da Rocha e agora cumprem outrop tipo de pena na liberdade: a falta de oportunidade para recomeçar, falta o emprego.

Everaldo José da Silva, é jovem, casado, pai de um menino de oito anos. Desde que saiu da penitenciária, tem buscado integrar os egressos do município, para que organizados consigam encontrar oportunidades de trabalho e fontes alternativas legais de renda. A vontade de mudança, a ânsia por recomeçar está estampada no rosto do jovem. Na estante estão seus livros e no peito o desejo de retomar a faculdade de direito.

Junto à Pastoral Carcerária e Everaldo visitamos a casa de algumas pessoas no bairro Jardim Alegria, entre elas conheci Nenê, pai de sete crianças – três seus e quatro de sua companheira- (uma acabara de retornar da UTI no colo da esposa, que caminhou 40 minutos do hospital até sua casa). O sorriso do pai ao pegar o bebê no colo foi marcante, e mais ainda sua afirmação.  “Tenho essas crianças pra sustentar se eu não arrumar emprego vou ter que roubar, elas dependem de mim”, disse Nenê, em liberdade há seis meses, depois de nove anos preso.

Everaldo também nos levou à casa de Dona Elenice e Sr. Brito, idosos com problemas de saúde, ambos moram em um barraco no meio do mato. Não há energia, tão pouco esgoto, mas há ali esperança. Dona Elenice é tímida, perguntei sobre seus filhos, e me revelou ter quatro “espalhados pelo mundo”. Ali o casal depende da solidariedade de pessoas como Everaldo.

Durante a visita acompanhou-nos um rapaz que ia filmando tudo, registrando minhas perguntas, nossas ações, nada que me intimidasse, mas me deixava curiosa. O desejo deles é registrar tudo o que acontece, com fotos, filmes, estão se organizando para fundar a Associação de Moradoresdo Jd. Alegria e Amigos de Francisco Morato. O objetivo é ajudar egressos a se ressocializarem, encontrarem oportunidades de emprego, denunciarem o preconceito, criando consciência na sociedade, de que é necessário intervir e cobrar dos órgãos públicos os direitos garantidos em lei. Everaldo insisti que ele foi condenado e cumpriu pena de acordo com a lei, e por isso acredita que ela [a lei] deva ser respeitada por todos os cidadãos, não apenas pelos pobres.

Nesta manhã (16/09), recebi telefonema de Everaldo “Karla desculpa te ligar, mas o senhor Brito passou mal, ligamos para a ambulância do resgate, eles não vieram porque diziam estar com muitas ocorrências, coseguimos um carro e levamos o Brito até o hospital, chegando lá no estacionamento adivinha? Tava lá a ambulância parada, várias,  isso é um desacaso com a gente”.

O Ká entre nós está aqui, escrito por uma Maria prestes a receber o diploma de jornalista. Percebo na pele, no  coração, depois de tantas andanças de norte a sul desta cidade e deste país, que a função de um jornalista e de um meio de comunicação, por mais simples que seja é servir a sociedade. A redundância do serviço aqui, se faz necessária. Este blog, os meios de comunicação precisam informar e denunciar, servindo aos sujeitos para que se organizem e cobrem seus direitos, assim como Everaldo e as esposas de tantos reeducandos, que me orgulham de tê-las como minhas leitoras.

O amor persiste, além das grades em Franco da Rocha

O último sábado (29/08) foi saudado com um sol bonito e quente, um céu azul, azul…um belo dia para celebrar a vida, a liberdade e de fato eu a celebrei.

No mesmo dia, às 7h30 estou à caminho de Franco da Rocha, mais especificamente ao presídio Nilton Silva, o P2. Acompanho a Pastoral Carcerária Padre Macedo, que tem uma missão especial. Orientar os presos que estão buscando o matrimônio.

Karla Maria | Os 13 casais na Penitenciária Nilton Silva, Franco da Rocha
Karla Maria | Os 13 casais na Penitenciária Nilton Silva, Franco da Rocha

Para a realização do casamento, a pastoral conta com o apoio do diretor da Penitenciária, senhor Adevaldo Pereira de Souza e todos os funcionários, que vêm a iniciativa da Pastoral como um incentivo à ressocialização do preso. “Com a possibilidade do casamento, eles passam a se cuidar, o comportamento melhora muito e eles ficam mais tranqüilos, porque sabem que alguém os espera lá fora”, afirmou um dos coordenadores de disciplina, João Braga.

Às 9h da manhã o portão do P2 já abrigava as noivas, 13 mulheres ansiosas aguardavam o momento de reencontrar seus noivos. Juntos acompanharam a palestra assessorada pelo casal Nery e Nadir Oliveira, casados há mais de 30 anos, membro da Pastoral Familiar da Arquidiocese de São Paulo. Durante a palestra Nery falou da importância do perdão na convivência e na construção de um lar.

Às 12h a palestra foi encerrada e foi servido um lanche, com pão quentinho feito na padaria do presídio. Neste intervalo as histórias de amor surgiram.  Elisangela da Silva Santos tem 27 anos e Reinaldo Machado Bueno, 26. Se conheceram no centro da cidade de São Paulo há nove anos, enquanto Reinaldo morava na antiga FEBEM – Fundação Estadual do Bem Estar do Menor. Hoje o casal tem quatro filhos Gabriel, Daniel, Samuel e Mayara e contam com a ajuda da Pastoral Carcerária para oficializar a união.

foto: Karla Maria | Reinaldo e Elisângela
foto: Karla Maria | Reinaldo e Elisângela

Reinaldo afirma que quer casar para provar seu amor e começar uma nova vida com Elisangela. Quando questionado porque estava preso ele respondeu de cabeça baixa: “a situação estava extrema e pra poder ajudar em casa eu roubei, mas agora eu to pagando, Graças a Deus”, afirmou o reeducando que está preso há dois anos e cinco meses e se diz esquecido pelo estado. “Se não é a pastoral carcerária vim aí, a gente fica esquecido, como um leão dentro da jaula e é muito desumano”, afirma Reinaldo, que tem ainda 2 anos e meio pela frente de pena a cumprir.

Após o intervalo, uma pausa para dúvidas sobre a cerimônia que ainda não tem data marcada. Para o Casamento Coletivo no Presídio Nilton da Silva, estão cadastrados 79 casais, que serão acompanhados pela pastoral.

A Pastoral Carcerária Padre Macedo, criada em 12 de julho de 2008 faz visitas quinzenais aos presídios de Franco da Rocha e prioriza quatro linhas de trabalho: a evangelização, o diálogo com a sociedade, a promoção da cidadania e a Justiça, buscando a recuperação e o exercício de valores morais, pessoais, coletivos e sociais.

O trabalho da pastoral busca resgatar a dignidade daqueles que por vezes, de fato estão esquecidos por familiares, amigos e pelo Estado. O trabalho não é defender o preso, é  acolher, ouvir, respeitar e lutar para que estes homens/mulheres, que estão pagando seus erros, tenham uma segunda chance perante à sociedade. Sem dignidade e respeito, ninguém consegue se levantar e recomeçar.

Eu recomecei, de novo e mais uma vez. Faço questão da redundância. O portão do Nilton Silva se fechou, ouvi a tranca. Respirei fundo. Eram 13h30, o sol não ofuscou meus olhos, ele me saudou com o calor da vida, da liberdade.